Passageiros do trem

Flávia Mello
3 min readJul 8, 2024

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Eu estava lá parada, olhando aquele trem passar, às vezes depressa, às vezes lentamente e eu podia ver os rostos embaçados devido à velocidade em que o trem viajava.

Algumas vezes, podia presenciar os passageiros desse trem descendo, alguns me fitavam nos olhos, alguns trocavam palavras comigo, alguns até ficavam e compartilhavam alguns momentos ao meu lado.

E algum tempo depois, os rostos mudavam, mais uma vez eu perdia de vista alguns daqueles passageiros, mas sempre ficava algo deles em mim, uma frase, um abraço, um olhar, um sorriso, alguns deixavam flores que agora estavam murchas e sem vida, algumas me feriam vez ou outra com seus espinhos.

Eu continuava ali naquela estação assistindo a todos os movimentos, idas e partidas enquanto eu estava em busca de uma estação final, em busca de um destino onde eu pudesse ficar e me sentir em casa.

Eu era uma aventureira vivendo tudo com intensidade, experimentando em meu lábio o doce e o amargo, o remédio e o veneno, as borboletas no estômago e os socos na cara.

Aquele lugar era mágico, tudo acontecia, e eu vivia sentindo cada uma daquelas emoções, sem fugir, sem escapar, eu sentia tudo.

Criei dentro de mim uma espécie de refúgio, tal qual crianças estadunienses com suas casas na árvore, aquele era o meu lugar secreto, era a minha “casa da árvore interior” (é um nome engraçado que acabei de criar, mas inegavelmente adorável). Ali eu me curava, ali eu consertava as coisas que deram errado, os destinos que se cruzavam por engano do cosmos (é aquele assunto que os cientistas falam sobre a entropia, onde a ordem tende ao caos), aprendi e senti na pele muitas vezes os efeitos das leis do universo, era uma luta perdida às vezes, em alguns momentos eu precisei aceitar e sentir aquilo, precisei olhar fundo nos olhos dos meus demônios e para somente assim, dominá-los. Li uma vez em um livro sobre estratégias de guerra, que só se pode vencer seu inimigo, se você conhecer seus passos, eu deixei que a dor se sentasse à mesa junto a mim e desfrutasse do meu banquete, ouvi tudo o que ela me disse com atenção, deixei que a dor tomasse conta de mim e no final, quando ela sorriu, mesmo com dificuldade, eu sorri de volta, e aprendi a controlar o meu caos interior, ao perceber que eu sobrevivi, que a vida continuou e que eu voltei a sorrir e que da mesma forma que o trem passa por manutenções, eu precisava de uma também. Então, fui atrás de um mecânico das emoções e voltei a ser leve, voltei a sentir vontade de viver. Mas eu sabia que eu precisava reconfigurar os trilhos, mudar as direções, evitar que mais caos se instaurasse no meio da multidão que passava.

Um dia eu partirei dessa estação, um dia não irei mais voltar, o trem continuará passando, novas pessoas chegarão a seus destinos, outras partirão e o ciclo vai se repetindo, de novo e de novo.

Às vezes me pergunto se é possível algo ser belo e triste ao mesmo tempo, porque sinto que é isso o que sinto, a cada vez em que penso sobre este lugar, sobre essas pessoas.

Sinto que é hora de partir, hora de deixar velhas bagagens para trás, começar em um novo lugar, com novas pessoas, com um novo lugar para chamar de “lar”.

Estou vagando por aí, em busca de um lugar para descansar o meu coração, está frio lá fora, há pedrinhas de gelo em minha jaqueta, meus cabelos estão úmidos e minhas mãos trêmulas devido à baixa temperatura, é possível ver a direção do vento através das luzes cintilantes dos postes. Está anoitecendo, é hora de voltar para a sala onde escrevi este relato, esta confissão, este grito de alívio enquanto meu coração se cura de toda aflição.

Avisto uma casa no meio do nada, com a luz da sala acesa, meu coração se enche de esperança de que haja alguém, para que eu possa pendurar minha jaqueta, sentar-me à poltrona e aquecer minhas mãos próximo à lareira, tomar um chá quente, ainda saindo fumaça da xícara e ouvir uma doce e suave voz dizendo: “Venha aqui, vou cuidar-te. Fique.”

Este texto não é sobre trem.

Flávia M.

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Flávia Mello

Apaixonada pelo Conhecimento e obstinada pela Excelência.